“A unção, de novo, e sua incrível dificuldade
birrenta”
(Quorsum haec tam
putida tendunt?)
A expressão entre
parênteses acima é de Horácio antigo filósofo grego, que Erasmus Desiderius
cita, colocando-a nos lábios murmurantes de ouvintes chocados, em seu clássico
livro ‘Elogio da Loucura’, obra de fundo cômico que investindo contra o
obscurantismo dogmático e a superstição generalizada alcançou notoriedade
mundial.
Sua sátira
acrimoniosa lançou feroz ataque também contra a igreja cristã de seu tempo, seus
ensinamentos, crendices, ignorância e mundanismo característico de ‘tolos
convencidos de que podem comprar não apenas todas as bênçãos e prazeres desta
vida, como também o céu, depois da morte, e, por puro amor ao lucro imundo, os
clérigos encorajam-nos em seus erros’1.
Os livros têm
seus destinos, já disse alguém. E qual não é minha surpresa ao verificar a
contemporaneidade do livro do humanista de Roterdã, que certamente goza do
destino dos bons livros, que nos instigam, nos incomodam e nos obrigam a ir
mais adiante.
Mas há daqueles,
lá como cá, que não se adiantam, mesmo com os Livros, antes insistem ainda em dificuldades
birrentas como a da unção, ela novamente, que vem abrir à força meus ouvidos
pasmos fazendo minha boca murmurosa repetir: qual (quando) será o fim de
semelhante necedade?
Mas birrenta
como é, a unção sempre germina da ‘garganta profética’ de algum paladino
desavisado (ou mal intencionado?), defendendo como de costume profetas, reverendos,
santidades, ministros, bispos ou apóstolos (ainda não vencemos a ostentação e
magnificência pomposa dos títulos eclesiásticos honoríficos) que por puro amor nem
sempre pela igreja ou por Cristo valem-se das benesses de sua arrogada posição
e condição ‘ungida’ corroborando o deslize embirrado da unção quase sempre para
validar práticas e doutrinas estranhas ou escusar-se de comportamento pouco
ético e bem distante da Sagrada Escritura (temos Livro!). Se não devemos
generalizar, para sermos politicamente correto, reconhecemos exceções,
entretanto exceções só confirmam a regra...
Se outrora uma
ênfase na santificação exigia perfeição moral completa ou parcial também e
principalmente desses ‘líderes ungidos’, hoje ‘um realizar excitante’ mesmo que
moralmente comprometido é satisfatório. Se ‘ungidos especiais’ comprometem a sã
doutrina, a dignidade humana, a ética entre seus pares, isso é sem importância,
afinal eles fazem e acontecem. Será aceitável o comprometimento do preceito
bíblico (o Livro de novo...), da decência e da moral frente a um pragmatismo eclesiástico
utilitário? Parece que sim!
Dentro da
tradição que pertenço ‘para ser pastor local, só era preciso ser reconhecido
como tal na congregação e gozar de boa reputação. A congregação reconhecia o
pastor com base nos dons que exercia... Não pensavam que a ordenação de uma
pessoa proporcionava-lhe, de algum modo, a graça (unção especial) necessária
para desempenhar seu ministério’2.
Diferente disso
o intransigente ‘ungido intocável’, aquela bizarra autoridade espiritual
suprema que imprime sucessivamente sua vontade e só a sua ambição sempre imposta
pela pretensa unção divina, firma-se em meio a um verdadeiro ‘vedetismo
pastoral’3. Nada mais estranho para uma democracia batista, onde ‘os
indivíduos não se reduzem a objetos [lucrativos] para o poder [eclesiástico]
constituído, mas são co-responsáveis e co-participantes desse poder, em forma
de co-gestão’.
Textos como 1º
Samuel 24.6; 1º Crônicas 16.22 e Salmo 105.15 são frequentemente citados e
alardeados como base de sustentação para a unção especial de certos indivíduos.
Ureta falando
sobre Unção do Espírito destaca que a expressão é pouco usada no Novo
Testamento, entretanto:
No Antigo Testamento, a unção tinha uso restrito. Eram
ungidos profetas, sacerdotes e reis, numa espécie de ato consagratório para uma
atividade especifica. “Com esse rito [a unção], o ungido é colocado à parte,
feito participante da esfera divina. Pode apresentar-se diante de Deus em nome
do povo, e atuar como um representante de Deus 4”
Eichrodt, no
prólogo à quinta edição revisada de seu livro Teologia do Antigo Testamento realça
sumariamente que os escritos do AT dão testemunho “não de um corpo doutrinal
perfeito, senão de uma realidade divina que vai se revelando na história”5
e esse avanço sendo acatado por Ureta o leva a destacar considerando o NT, que
com relação aos crentes (2ª Coríntios 1.21; 1ª João 2.20,27) a unção
diversamente do AT não se restringe mais a alguns poucos escolhidos. Ladd
esclarece que
Este novo aspecto da ação interior do Espírito é
contrastado com a obra do Espírito na antiga dispensação. A obra mais notável
do Espírito, no Antigo Testamento, foi um “ministério oficial”, i.é., o
Espírito dotou certas pessoas, porque elas preencheram ofícios particulares na
teocracia e a pessoa que estava no oficio necessitava de energia do Espírito
para seu trabalho oficial. O símbolo para esta outorga oficial do Espírito era
a unção com óleo6.
Citando João
14.16,17 Ladd finaliza afirmativamente dizendo que esse privilégio é agora de
todo o povo de Deus, não somente de alguns líderes oficiais.
O leitor atento
poderia argumentar que Ureta ao citar Paulo força o texto (2ª Coríntios 1.21) que
evidentemente não faz referencia a unção comum a todos os cristãos. Clines7
comentando o versículo considera que a qualificação de Silas, Timóteo e do
próprio Paulo para um ministério cristão especifico (no caso de Paulo o
apostolado) é que está em questão. Entretanto diferente da visão que deficientemente
se adota enfatizando uma doutrina do Espírito que exclui a unção irrestrita a
todo cristão não se processa na linguagem paulina, nela em especial, o Espírito
é pessoa poderosa, transcendente e ativa que habita em todos os crentes e os
move (Romanos 8.9,11, 14; 1ª Coríntios 3.16; 6.19; Gálatas 5.16,18), é derramado
sobre eles (Romanos 5.5), é bebido por todos eles que os enche (1ª Coríntios
12.13; Efésios 5.18).
Conquanto Paulo
se considere ungido, ‘feito participante da esfera divina’ e ‘capacitado com
poder do céu’ (2ª Coríntios 1.1; 3.6), sua unção nunca é apresentada em
detrimento de outros cristãos, na passagem de 2ª Coríntios 1.21, Paulo se
mostra confiável e constante, pela graça que também lhe alcançou, a um grupo
rebelde que não lhe reconhecia. Mesmo ali ‘sua autoridade básica se origina do
evangelho que ele recebeu a missão de anunciar, não do direito de sua missão em
si’8. O apóstolo bem entendeu que qualquer pensamento ou prática
diferente disso impossibilitaria o ‘espaço que permita que o povo de Deus
funcione como um sacerdócio, cada um trazendo seus dons a Deus e um ao outro
mutuamente’9 (1ª Coríntios 12.1-31).
Assim não se
pode equivocadamente enfatizar apenas o aspecto veterotestamentario da unção
onde certamente o ‘Espírito dotou certas pessoas, porque elas preencheram
ofícios particulares na teocracia e a pessoa que estava no oficio necessitava
de energia do Espírito para seu trabalho oficial’ por ser um enfoque reduzido e
potencialmente alienante; Brunotte10 tratando do verbete Ungir destaca
que no NT a unção também consistia em cuidado do corpo (Mateus 6.17), sinal de
honra a um hóspede (Lucas 7.38,46; João 11.2; 12.3); honra aos mortos (Marcos
16.1); ação curativa (Marcos 6.13; Tiago 5.14). Müller, abordando o mesmo
verbete e evocando seu sentido religioso e simbólico propõe que no NT a ‘unção
é metáfora para a outorga do Espírito Santo, de poder especial, de uma comissão
divina... Os cristãos (todos eles), ao serem ungidos, são feitos membros
legítimos da promessa da aliança’.
Pedro
respondendo a indagação de alguns judeus bem se expressou dizendo: ‘Abandonem o
pecado, voltem para Deus, e cada um de vocês seja imerso pela autoridade de
Yeshua, o Messias, para o perdão de seus pecados, e vocês receberão o dom do Ruach Hakodesh! Porque a promessa é para
vocês, para seus filhos e para todos os que estão longe – para todos quantos Adonai, nosso Deus, chamar!’ (Atos
2.38,39 – Novo Testamento Judaico). A dádiva do Espírito não se restringe a
alguma ordem de ‘especiais’, é certo que a atribuição dos dons do Espírito é
circunscrita ao seu desejo pessoal (1ª Coríntios 12.11), contudo os dons não
criam uma divisão espiritual de inferiores e superior dentro do corpo de
Cristo. Paulo em bela expressão afirma que sujeição opressiva nada tem haver
com o Espírito do Senhor (2ª Coríntios 3.17).
Acirrada e assanhada
a ‘unção dos especiais’ grassa uma vez que não distinguimos claramente os
princípios hermenêuticos associados com a Reforma. O que vemos é uma
interpretação ‘altamente “espiritualizante” das Escrituras’, principalmente do
AT, que não respeita o sentido claro, simples e evidente das Escrituras e seu
caráter histórico. Bem se compreende o desassossego de Erasmus, um católico,
percebendo os problemas decorrentes de uma leitura bíblica que não alcançava ou
desprezava o seu sentido histórico, literal e original. Do livre exame (precioso
princípio reformado) desatinamos para a livre interpretação sempre pessoal,
subjetiva e aleatória. Os reformadores sempre levaram em consideração o que
havia de melhor na tradição exegética da igreja antiga. Quanto a nós, parece
que sempre queremos uma nova instrução revelada de preferência a algum ungido
especial que está fazendo proezas. A expressão ‘Sem Ele nada podemos fazer’ aplica-se
ao super ungido e o que vemos são impérios pessoais, construídos sobre a
crendice supersticiosa de broncos persuadidos de que podem comprar não apenas
todas as bênçãos e prazeres desta vida, como também o céu, depois da morte, e,
por puro amor ao lucro imundo, seus ungidos encorajam-nos em seus erros.
Quorsum haec tam putida tendunt?
- ERASMO, D. Elogio
da Loucura. Os Grandes Clássicos da Literatura. Volume III. São Paulo/SP:
Editora Novo Horizonte S/A. pg 108.
- DRIVER, J. Contra
a Corrente. Ensaios de Eclesiologia Radical. Campinas/SP: Editora
Cristã Unida, 1994. pg 46.
- YAMABUCHI, A K. Uma análise do Movimento G-12. Reflexões de um Pastor Batista. In Rumo e Prumo. 4ª edição. Publicação da CBESP e da OPBB-SP:
2006. pg 117.
- URETA, F. Elementos
de Teologia Cristã. Rio de Janeiro: JUERP, 1995. pg 50.
- EICHRODT, W. Teologia
do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2004. pg 10.
- LADD, G E. Teologia
do Novo Testamento. 1ª edição - São Paulo: Exodus, 1997. pg 279, 280.
- CLINES, D J A. 2ª
Coríntios. In: Comentário
Bíblico NVI: Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2009. pg
1932.
- HAWTHORNE, G F; MARTIN, R P; REID, D G; Dicionário de Paulo e suas Cartas. São
Paulo: Edições Loyola, 2008.
- FEE, G D. Paulo,
o Espírito e o Povo de Deus. Campinas/SP: Editora United Press, 1997. pg 208.
- BRUNOTTE,
W; MÜLLER, D. “Ungir”. In: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2ª
edição. São Paulo: Vida Nova, 2000. pg 2568.